AC DE PAULA
Dom Quixote Tupiniquim
Textos

SENHAS

O relógio na parede da repartição pública marcava exatamente 8:00 da manhã. Senha 198. Guichê 3. Eu cheguei às 6:00, antecipando a espera que, sabia, seria longa. Na esperança de não enlouquecer com a passagem lenta do tempo, passei a observar as pessoas ao meu redor, tentando adivinhar suas histórias, seus motivos para estarem ali, tão cedo.

 

O painel eletrônico piscava, mudando de número em intervalos regulares. Senha 125. Senha 126. Cada atualização trazia uma mistura de esperança e frustração. Tinha trazido um livro, mas minha mente estava agitada demais para a leitura. Ao invés disso, permiti-me sonhar, divagar sobre as coisas da vida, enquanto observava o vaivém das pessoas.

 

Um homem idoso, de chapéu puído e sapatos bem lustrados, levantou-se lentamente quando sua senha foi chamada. Parecia ter todo o tempo do mundo, movendo-se com a calma de quem já viu muitos dias passarem. Perto dele, uma jovem mãe tentava manter seu filho pequeno entretido, uma batalha constante contra a impaciência natural da infância.

 

De repente, uma lembrança do velho ditado veio à mente: “Antes tarde do que nunca.” Dizem que morreu de velho, mas ninguém confirmou. Sorri com a ironia da frase. A paciência forçada da espera nos guichês era um lembrete de como a vida podia ser uma longa série de pequenas esperas.

 

Enquanto refletia, o som metálico de um carro de café atravessava a sala. O aroma convidativo fez meu estômago roncar. Fui até o carrinho e pedi um café, agradecendo silenciosamente pela breve interrupção na monotonia. Voltando ao meu lugar, me permiti imaginar como seria se a vida fosse organizada por senhas. Cada momento importante, uma senha aguardando ser chamada. Senha 198, guichê 3. O casamento. O nascimento dos filhos. As grandes vitórias e as pequenas derrotas.

 

O painel piscou novamente. Senha 150. Ainda estava longe da minha vez, mas o tempo passava, ainda que devagar. A senhora ao meu lado, com um sorriso gentil e rugas que contavam histórias, puxou conversa. Falamos sobre o clima, sobre a espera, sobre como a vida é uma sequência de momentos que só se revelam completamente quando olhamos para trás.

 

Enquanto ela falava, minha mente vagava para um sonho antigo, quase esquecido. Uma viagem que sempre quis fazer, uma cidade em um país distante. Nunca encontrava o tempo ou a coragem para ir, mas sentado ali, ouvindo a voz suave da senhora, decidi que talvez fosse hora de resgatar aquele sonho. Afinal, antes tarde do que nunca.

 

O tempo continuava a passar, a cada senha chamada, eu me aproximava mais do meu destino. Senha 180. Senha 185. O ritmo dos números era quase hipnótico, uma cadência que marcava a passagem inevitável do tempo.

 

Finalmente, o painel piscou uma última vez para mim. Senha 198. Guichê 3. Levantei-me com uma mistura de alívio e apreensão, caminhando até o guichê com passos firmes. A atendente, com um sorriso cansado, me cumprimentou.

 

— Bom dia. Sua senha, por favor?

 

Entreguei o papel e, enquanto ela verificava meus documentos, pensei em como aquele simples pedaço de papel tinha controlado minha manhã. Mas agora, minha vez havia chegado. A espera tinha terminado. Pelo menos por hoje.

 

Ao sair da repartição, o sol brilhava mais intensamente, como se o mundo tivesse esperado por mim para continuar girando. Com um novo senso de propósito, caminhei pelas ruas movimentadas, decidido a não deixar mais nenhuma senha definir minha vida. Hoje, eu escolheria quando e onde meus sonhos se realizariam. Afinal, antes tarde do que nunca, eu estava pronto para viver plenamente.

 

 

AC de Paula
Enviado por AC de Paula em 04/06/2024
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