AC DE PAULA
Dom Quixote Tupiniquim
Textos
O BRANQUEAMENTO DE JESUS CRISTO À MACHADO DE ASSIS
                                                            
Nos anos setenta eu era corretor imobiliário e trabalhava com imóveis de alto padrão nos Jardins um dos bairros nobres de São Paulo, era uma sexta feira ensolarada eu estava na Alameda Lorena, terno e gravata como mandava o figurino dos consultores imobiliários da época, carro top, limpinho, brilhando, e cheirando à tinta, um Opala Cupê do ano. Cheguei na esquina da Alameda Ministro Rocha Azevedo e para quem não conhece, esclareço   que é uma ladeira considerável.

A região parecia um canteiro de obras, muitos edifícios sendo erguidos e ainda não havia a limitação de horário para transito de veículos pesados na região da Avenida Paulista, e consequentemente muitos caminhões com material de construção por ali transitavam. Eu vinha da região do Paraíso e teria que obrigatoriamente entrar à direita para chegar ao topo do espigão das mais paulistas das avenidas.

Parei na esquina, havia um caminhão carregado de pedra e areia subindo na direção em que eu teria que ir, bateu o sininho e alguém disse no meu ouvido; “ele não vai conseguir subir”.
O sinal abriu mas eu fiquei ali parado sem me importar com os carros buzinando atrás de mim, de repente como previsto o caminhão começou a ratear e não ia dar para encarar a subida, o motorista pelo retrovisor deve ter imaginado o caos que seria segurar o caminhão de ré pela ladeira abaixo. Então ele resolveu evitar uma desgraça maior e jogou o veículo para a transversal exatamente onde eu estava agora forçosamente parado.

Os ganchos da carroceria abriram a lataria do capô como um abridor abre uma lata de sardinhas, meu carro serviu de escora e graças a Deus o caminhão não foi pela ladeira abaixo. Há tempos eu já aprendi a ver sempre o lado bom das coisas, ponderei que apesar do estrago se eu não tivesse parado e insistido em subir atrás do caminhão, tudo poderia ter sido muito pior, poderíamos os dois estar descendo a ladeira. Desci do carro examinando o tamanho do prejuízo no capô e na traseira pois fui empurrado acertando o carro de trás.

Fui procurar o cartão com o telefone da seguradora e pensando em encontrar um orelhão para ligar pois naquela época nem mesmo o famoso celular tijolão existia. Foi quando uma senhora simpática chegou pra mim muito educadamente me entregou um cartão de visitas dizendo: “Olha moço, (naquele tempo eu ainda era) aqui está meu nome e o meu número, se o seu patrão não acreditar em você, eu sou sua testemunha, sei que você não teve culpa, é só pedir pra ele me ligar que eu confirmo como tudo aconteceu! “  

Olhei para ela, agradeci, guardei o cartão e fui procurar um orelhão! O que ela havia acabado de fazer era um simples ato humanitário e senti que ela agiu bem intencionada, era um comportamento típico de uma pessoa branca, de bem, que vivia num país em que graças a Deus não existe racismo, por isso um negro de terno e gravata, num bairro nobre, dirigindo um carro de luxo que havia sido consideravelmente danificado só podia ser o motorista de algum bacana, que certamente o culparia pelo ocorrido.

É assim que a banda toca e muitos insistem em dizer que tudo não passa de “mimimi”. Eu até acho que às vezes os ativistas em luta contra o preconceito racial exageram um pouco. Tenho sim o pé na senzala mas ser um afrodescendente tataraneto de escravos não faz de mim um coitadinho, e jamais me impediu se ser quem eu sou!

O processo de branqueamento vem de longe, haja vista o questionamento sobre a origem étnico-racial de Jesus de Nazaré, estudos bíblicos, históricos, teológicos e arqueológicos evidenciam que ele era de origem judaica nascido nos arredores da Palestina durante a ocupação territorial pelas forças de Roma.

Diante de tais fatos sendo o Nazareno detentor dessa herança geográfica e étnica pode-se facilmente concluir que a imagem do cristo branco de olhos verdes criada pela tradição cristã europeia não se coaduna com a verdade e não guarda semelhança alguma com o Jesus Cristo Rei dos Judeus nascido na Palestina, afinal ele não era branco e sim um judeu negro nascido no Oriente Médio. Claro que isso deve ter incomodado muita gente.

Já nas plagas tupiniquins a coisa também não é diferente. O caso mais evidente e que se tornou assunto internacional, segundo Luiz Mauricio Azevedo, pós-doutor em Literatura Brasileira que diz: “O processo de branqueamento pelo qual Machado de Assis passou diz respeito ao imaginário social que o povo brasileiro construiu em relação à população negra, que é vista como inferior e incapaz pela população não negra.” Já em manifesto a Faculdade Zumbi dos Palmares em São Paulo afirma que: "o racismo escondeu quem ele era por séculos. Sua foto oficial, reproduzida até hoje, muda a cor da sua pele, distorce seus traços e rejeita sua verdadeira origem" e diz que “já passou da hora de esse erro ser corrigido”.

Ao caracterizar o escritor Machado de Assis, o professor Luís Augusto Fischer é nada parcimonioso e afirma que se trata de “um caso realmente raro de um sujeito especialmente inteligente e ao mesmo tempo operoso, em cuja obra podemos encontrar um tanto da alma do país em sua época.” É um dos raros gênios brasileiros, com o acréscimo de que foi um impressionante trabalhador braçal. Sua obra completa mais recente tem quatro volumes, cada qual com umas 1.500 páginas. São dez romances, mais de 200 contos, sei lá quantas crônicas, mais poesia, teatro, tradução, crítica, correspondência... Isso tudo na vida de um funcionário público exemplar, que trabalhou até pouco antes de sua morte. Isso tudo na vida de um cara que veio bem de baixo e encontrou caminho para ascender, em condições bem complicadas.

Enfim, um caso realmente raro de um sujeito especialmente inteligente e ao mesmo tempo operoso, em cuja obra podemos encontrar um tanto da alma do país em sua época. Por essa conta, ele tem para o Brasil o valor de um Shakespeare, de um Balzac, de um Cervantes, de um Camões, um Dante. Uma sorte nossa ele ter existido!

E eu AC de Paula, poeta, compositor, escritor e dramaturgo afrodescendente concluo que ter todos os atributos e valores dos proeminentes escritores citados e ser filho de mãe branca e pai negro, neto de avós paternos alforriados que viveu por meio século quase, até que se abolisse a escravidão faz dele inquestionavelmente um afrodescendente e essa constatação tal qual a de que Jesus era um  judeu negro nascido no Oriente Médio, deve ser difícil de ser engolida por alguns daqueles que tem o mínimo de menalina na pele.

AC de Paula é poeta e dramaturgo



AC de Paula
Enviado por AC de Paula em 03/08/2020
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