OLHOS DE MENTA !
O gelo brilhando no copo, o sangue dançando ao som do bolero que preenchia todos os espaços, e o colorido das luzes ofuscando qualquer possível resto de esperança escondido em algum olhar!
Aquela noite tinha que ser diferente pois, deliberadamente ele havia decidido, estava cansado de tudo, de teto baixo, pra lá de down, completamente exausto daquele reinante conformismo absurdo, não concordava de jeito algum que Deus escrevia certo por linhas tortas, não conseguia engolir essa tal filosofia!
Ele tivera seus grandes amores, vivera loucas paixões, dissabores, e sonhos além das razões, no entanto, preso agora nos fios resistentes daquela teia, já quase no fundo do poço, o sangue fervendo na veia, a esperança no osso, ele sabia que quando a coisa fica preta no apogeu do eclipse, ou quando soa a trombeta do arauto do apocalipse, é preciso não se perder a cabeça, nem abrir mão do direito de que a vida aconteça como quiser, do seu jeito, independente do projeto, do momento, da dosagem, do contexto, do objeto, dos medos ou da coragem, da paixão voraz, selvagem, das razões, dos desatinos, do código da mensagem, ou por quem dobram os sinos, pois a vida nos desafia de forma fria e fatal e todo dia é dia do tal juízo final!
Ele se lembrava, ainda que muito vagamente, de quando acreditava que tudo era possível e havia muita gente brincando de roda na calmaria dos mares do tempo, navegando aos quatro ventos em busca de um porto seguro, mantendo a qualquer preço a bravura, o sangue frio, o orgulho, a paciência, a vantagem, o desafio, a razão, a consciência, o prescrito na receita, as aparências e a virtude, e acima de qualquer suspeita, os sonhos da juventude!
Agora ele se transformara apenas e tão somente em mais uma peça da engrenagem da grande máquina.
Questão de sobrevivência!
De paletó e gravata, de pasta embaixo do braço, agenda, hora marcada, pisoteando seus sonhos no caminho para o sucesso, sem tempo pro bate-papo, sem o encanto do canto, alheio, condicionado, sem rima para a poesia, e não foram poucas as vezes, que tentara dizer pra si mesmo, que pra tudo existe um jeito, porém nunca lhe dera ouvidos!
Por isso talvez ele estivesse decididamente perplexo ante o auge da indecisão. Na margem da incerteza, entre o sim e o não, a suavidade e a dureza, o diamante e o carvão, entre as trevas das estrelas e o brilho da escuridão!
Entre o nada e o tudo, entre o princípio e o fim, o real e a fantasia, a verdade e a hipocrisia, no arco-íris do mundo, entre o raso e o profundo, seguindo qualquer caminho, canto-pranto-flor-espinho, sol e luz, sorte e destino, guerra e paz, ilusões dentro do peito, entre o errado e o direito,!
Quem lhe dera ser capaz de acreditar na magia de encarar a utopia como coisa natural, e de relance, num momento, solucionar o enigma no enunciado do poema, no contexto do teorema, ou no encontro das paralelas no infinito-pensamento!
Ele tinha uma remota lembrança de que a força dos sentimentos supera qualquer dificuldade, atravessa qualquer barreira, ultrapassa qualquer fronteira, inverte a ordem natural prescrita, que então se torna proscrita, seja ela imaginária, convencional ou restrita, vacilante ou convicta, e segue a desordem a risca, sem dar a mínima importância a qualquer eventual limite de ordem emocional e se perpetua na eternidade de momentos cheios de magia, fazendo valer cada instante!
Pois pra viver tem que ter ginga e tudo tem lugar hora, e quem não pode com a mandinga, mete os sonhos na sacola!
Muita fé, perseverança, etc... e coisa e tal, vale a fé na esperança, vá de retro baixo astral, e quando a esmola é demais é melhor ficar alerta, pois no limite da paz, bala perdida te acerta!
E não adianta chorar a lágrima derramada, melhor remédio é cantar, tristeza não leva a nada e sonhos não pagam impostos, sorrisos não pagam dívidas, e os sentimentos expostos valem as emoções vividas, doce magia encantada de saber viver a vida.
Mesmo assim, dos seus olhos não saía a lembrança esverdeada do brilho daquele mágico olhar que o deixara enfeitiçado.
Marinheiro de inúmeras viagens, vários sonhos naufragados, mesmo sem crer em miragens havia se esquecido de que jóia falsa também brilha, e que às vezes esmeraldas não passam de turmalinas!
Chegando em casa havia trocado o terno de caimento impecável, a gravata e a camisa de seda italianas, por uma camiseta velha e um jeans surrado e desbotado, que induzido pela antiga propaganda lhe dava a falsa sensação da mais completa liberdade.
Os sapatos de cromo alemão haviam sido substituídos por um par de tênis sem marca comprado em um camelô.
Não saiu fantasiado de rapaz bem sucedido! Sonhou acordado ao som dos boleros dos Anos Dourados, uma orquestra tocava “Catito-Catito” e ele dançava feliz, nos mares do sonho seguia “La barca”, “Sabras que te quiero”, “Total”, “:Ansiedad”, “Aqueles olhos verdes”, “Besame Mucho”, “Acerca-te mas”. Ouviu Os Incríveis, The Jordans, Mama and Papas e os Beatles, viu os grandes festivais, a Banda passou em Disparada atrás da menina perfumada de Channel número 5, o boy, de gola olímpica, passou na lambreta cheirando lança-perfume, e ele, chapado de paz e amor quebrou o seu telhado de vidro para poder atirar pedras em telhados alheios!
Foi aí que o luar invadiu a sala iluminando de beleza o anel de formatura jogado em um canto qualquer.
Saiu sem lenço e sem carteira de trabalho, na mão o velho baralho, automática na cintura, e só um restinho de esperança no bolso esquerdo do coração!
Na esquina dos devaneios ele desceu do sonho andando pois quem sabe o caminho certo não tem o direito de errar, é o que lhe havia dito aquele Velho Ditado que era amigo do peito do Pescador de Ilusões e que continuava bem lúcido sentado no banco da Praça do Mundo, conjugando o verbo viver pois se navegar é preciso, sonhar é imprescindível!
Quando deu por si estava ali no “Mais um trago” bebendo uísque misturado com cachaça, disposto a comprar briga e fazer trapaça ao entrar na jogatina, e a bem da verdade, poderia jurar que não era pra mostrar coragem, era só pra fugir da engrenagem, só pra sair da rotina, pois tinha plena consciência de que a carne é fraca, mas o seu santo era forte e ele não ligava pra sorte ou ao que desse a falar!
No espelho do balcão do bar olhou a ruga que lhe enfeitava a testa, mas não deu a mínima importância ao que esta lhe dizia, cantarolou como antigamente, ousou sorrir, coisa que não fazia, bem reparou que estava diferente, fingiu porém que nada percebia.
Pouco lhe importava sair dali cambaleando, misturando seus fracassos aos pedaços de luar.
Esgotada a sua paciência cortou as asas da esperança, subornou a consciência, quebrou as juras secretas, jurou não jurar mais nada, rompeu os laços fraternos, desvendou os segredos e os sigilos, mandou os anjos pro inferno dando pau a três por quatro na cabeça dos seus grilos!
Fechou os seus olhos tristes pra não ver a realidade, renegou as ilusões, colheu as flores do asfalto, chutou os sonhos pro alto, deu um pé na fantasia, rejeitou a tal da prática, exaltou a teoria, acreditou em paz na Terra, e quando a saudade bateu no peito, atendeu de má vontade e disse que não estava!
As pessoas a sua volta não estavam nem aí para o seu estado de espírito, continuavam intransigentes e indiferentes, cada qual na sua, completamente alheias as suas amarguras e pouco se importando se ele seguiria pelas carícias da noite escura, ao léu, sem rumo, sem eira nem beira quase chegando às raias da loucura.
Na mesa ao fundo, a linda mulher de olhos verdes não deixava transbordar um pingo sequer de tristeza, alias muito pelo contrário, a sua falsa alegria de aluguel chegava a ser contagiante, no entanto ela já estava cansada de ser o eterno colírio da menina dos olhos do olho da rua, exposta na vitrine de uma esquina qualquer ou na mesa de um bar , daquele brilho de sedução na estrela do olhar, e daquela conversa envolvente de mil promessas na cama para agradar o cliente de mais um programa, de esconder os seus sentimentos atrás de cada sorriso, pois que no seu ofício era fundamental, necessário, viver o momento e sufocar dentro do peito toda e qualquer emoção, e curtir a espera de um amor verdadeiro sonhando acordada, vendendo ilusão e o corpo sem qualquer compromisso e sem se importar em ser um sonho virado do avesso, anjo da noite amando quem pagasse o seu preço.
Rezava às vezes para que tudo se apagasse de repente da sua mente e todo o seu pensamento fosse um imenso deserto, pois então ela nem saberia da vida rolando lá fora, de mentiras nem segredos, da coragem ou dos medos, de idéias repulsivas, daquele viver tão sem nexo, de promessas impulsivas feitas na explosão do sexo, ou de ilusões coloridas feito luzes de neon!
Ela nem saberia da fogueira da saudade fazendo festa dentro do peito, ou do farol da tristeza ofuscando o seu olhar, da mágoa a flor da pele, das cores e seus matizes, da flor do amor e os seus espinhos, das dores e das cicatrizes e nem da desilusão!
Talvez então, com certeza ela em nada mais se apegasse, se ela nunca mais pensasse, se tudo em sua mente de repente se apagasse, então ela não saberia da cruel realidade da sua imensa solidão.
E o tempo sempre passando, e ela sem querer levando, a vida que não havia pedido a Deus, sempre bronzeando a pílula pois há momentos na vida em que não há ouro que aguente.
Mas o seu passado estava sempre presente em cada curva da estrada e a sua alma lavada pelas inúmeras paixões vividas, e pra fugir do marasmo, do escárnio, do sarcasmo, ela havia feito da vida um gozo pleno, um orgasmo.
No palco cumprindo a sua sina e movido pela realidade incontestável de que precisava comer e pagar o aluguel, entre tantas outras coisas, o cantor de boleros cuja vontade mesmo era poder mostrar seu talento cantando outro tipo de música, sonhava com o estrelato para poder parar de cantar para um punhado de gente pra lá de bêbada, e continuava a desfiar aquele repertório meloso, intrigado sem saber se a arte imita a vida ou será que vice-versa, a vida é a arte contida na imitação submersa?
Apenas mais uma dúvida entre tantas do Universo onde somos pródigos em estabelecer parâmetros, limitados pelos códigos dessa ordem mundial. Pois na fronteira para o nada esse tudo é mais profundo do que qualquer oceano e no dente da engrenagem somos meramente súditos de um reino de outro mundo, temporariamente prisioneiros da nossa própria embalagem!
Ele sabia do seu potencial e sabia também que algo em potencial pode ou não se tornar realidade, de nada adianta uma potencialidade que não ultrapasse jamais a barreira da possibilidade saindo do abstrato para o concreto.
Tinha plena consciência de que “mídia” era a palavra mágica que abriria as portas do sucesso, o qual, por sua vez, estava cada vez mais irremediavelmente dependente de uma outra palavra de apenas quatro letras, “jabá”, que há muito tempo deixara de ser apenas e tão somente uma iguaria do norte/nordeste.
Mesmo assim ele continuava a escrever canções e poesias, pois dentro da alma, ainda que de amor deserta, trazia guardados versos escondidos, que haveriam de brotar no tempo e na hora certa, com a magia e cores dos jardins floridos!
Ele fazia versos como quem vai a feira buscar restos de esperança na barraca das ilusões, como brinquedo de criança remendado de emoções, como quem se faz de louco pra segurar tanta barra, pra esquecer que ganha pouco, e que pra se iludir se agarra às garras da imaginação, como um operário da arte dedicado ao seu ofício, um operário padrão, em cujo peito pulsa, bate, o que chamam; coração!
Ele fazia versos assim como alguém que sofre as dores de uma solidão, e que por querer, ou por descuido, pode queimar-se nas brasas da fogueira da paixão, assim como alguém que ama sem algemas e sem regras, sem limites e sem alarde, e que no peito carrega fragmentos de saudade, como quem sonha acordado, como quem colhe um beijo na boca da mulher amada, e segue a estrela guia que brilha no seu olhar!
Como quem esqueceu o ofício, como quem chorou um sonho, como quem ardeu na fogueira, como quem sonhou um beijo, como quem perdeu sua estrela, como quem ousou ser feliz! Sabia que existem certas coisas que não precisam ser ditas, basta ficar admirando e deixar acontecer, não é aconselhável navegar contra o vento, remar contra a maré ou trafegar na contra-mão, noções básicas e fundamentais de sobrevivência na selva das necessárias ilusões são simplesmente dispensáveis, e que medidas infalíveis de não envolvimento emocional tornam-se ineficazes, e a objetiva racionalidade é meramente transitória no mecanismo da trajetória da conexão razão-coração!
Ele sabia de muita coisa, inclusive que é muito mais do que fácil crer na realidade, prática não é requisito, e muito menos, a habilidade, mas é indispensável, no entanto, a tal sensibilidade, para poder acreditar na virtual fantasia e viajar nas asas brancas de um sonho de todas as cores!
Que o amor brincando no peito, a paixão dançando no olhar, é o que faz do poeta, um ser privilegiado, um caçador de ilusões, pirata dos devaneios, navegando em verdes mares, naufragando em emoções, paralelo e marginal, perdido pelo espaço feito a luva do astronauta, entre a certeza e o quase daquilo que se imagina, e do que a realidade alcança!
Uma estrela de mil brilhos, um ET, um bicho-grilo, um querubim kamikase, espírito mensageiro, cibernético guerreiro, um verdadeiro samurái da esperança!
Sabia também que sonhar é correr perigo e viver é um risco calculado, sensações, emoções, são facas de dois gumes, delírios e devaneios, empurram a realidade ladeira da vida abaixo, no entanto, ansiava por encontrar, ah! quem lhe dera!, a tal linha divisória entre a realidade e a quimera, para poder mudar, se quisesse, o tal final da história e viver intensamente cada instante possível da realidade do seu sonho!
Sabia que com certeza, amanhã seria outro dia e que sem dúvida, na verdade poderia chegar num instante ou durar uma eternidade, pois a máquina do tempo, sempre, a qualquer momento, pode nos fazer vislumbrar as surpresas do futuro ou as cores do passado!
Mas para nós os pobres mortais, só o ontem e o hoje são verdadeiras certezas, o amanhã é só um talvez, uma mera possibilidade e sempre era melhor esperar chegar o amanhã, para aí sim, quem sabe outra vez, sermos uma certeza!
O gelo dançando no copo, o sangue fervendo nas veias, e de repente, a verde estrela daqueles olhos sedutores, deixou evidente que a mulher de olhos de menta não sorria quando olhava para ele.
Ela ria!
O gelo dançando no copo...,
o uísque fervendo nas veias...,
um tiro..., os olhos de menta gelando...,
o sangue vermelho brilhando...,
e nunca mais se ouviria
aquele cantor de boleros,
pois pairava no ar a certeza,
de que para ele...
jamais haveria amanhã!
antonio carlos de paula
poeta e compositor
AC de Paula
Enviado por AC de Paula em 14/03/2006
Alterado em 13/05/2010