AC DE PAULA
Dom Quixote Tupiniquim
Áudios
ALVO
Eu vejo o tempo passando
e mesmo sem querer eu penso
no que não quero pensar.

E pela estrada da vida passa boi, passa boiada,
a vida, é fava contada, fatalmente vai passar.
Mas me mantenho atento, e do meu jeito
eu tento encarar o que virá.

Ninguém está preparado para a hora do embarque,
a tal viagem sem volta todos querem adiar,
eu também, de minha parte, nada tenho a declarar,
nessa hora eu viro craque!

Na arte de prorrogar, vivo atento e alerta
a mente acesa e desperta, não se pode vacilar,
eu tento estar preparado, ela é a seta
eu sou o alvo, e ela não costuma errar.

Mas enquanto tem bambu eu tenho flecha,
um dia a cortina fecha e eu aqui sempre pensando,
sei que um dia a casa cai, mas vou cair atirando!

Alvo" — A Poesia da Resistência Diante da Inevitabilidade

Crítica litero-musical

A canção “Alvo” propõe uma abordagem poética e filosófica sobre a passagem do tempo e a finitude da vida, transitando entre a leveza da linguagem popular e a densidade existencial. Com uma estrutura lírica livre, versos curtos e cadência oral marcada, a composição se inscreve na tradição da poesia brasileira que alia sabedoria cotidiana à crítica sutil da condição humana.

Desde os primeiros versos, “Eu vejo o tempo passando / e mesmo sem querer eu penso / no que não quero pensar”, o eu lírico mergulha no conflito entre o desejo de viver e a consciência da morte. A figura do tempo surge como protagonista silencioso, uma correnteza que arrasta tudo consigo. A metáfora de inspiração popular — “passa boi, passa boiada” — intensifica a sensação de inevitabilidade, ao mesmo tempo em que confere identidade cultural à voz poética.

A letra se organiza como um monólogo interior, marcado por observações irônicas e uma atitude de resistência. “Ninguém está preparado / para a hora do embarque” sintetiza a angústia universal diante do fim, que é prontamente contraposta por uma atitude de enfrentamento: “Mas enquanto tem bambu / eu tenho flecha”. Essa transposição de um provérbio popular para o campo da existência confere à canção um brilho singular, atualizando o saber coletivo com um tom de luta e dignidade.

O ponto alto talvez seja o verso: “Ela é a seta, eu sou o alvo”. A morte é simbolizada pela precisão de uma flecha certeira, enquanto o eu lírico, ciente de sua posição passiva diante do destino, escolhe manter-se vigilante, lúcido e ativo. Há, aqui, uma espécie de ética poética da resistência: viver é estar sempre pronto, mesmo sabendo que o golpe final é inevitável.

Ao concluir com “sei que um dia a casa cai, / mas vou cair atirando”, a canção reafirma sua postura vitalista e combativa. O que poderia ser um lamento torna-se uma ode à coragem. O fim é certo, mas a atitude com que se caminha até ele faz toda a diferença.

“Alvo” é, portanto, mais que uma canção. É um retrato lírico da condição humana — frágil, finita, mas também capaz de beleza, reflexão e bravura. Um poema musical que nos atinge em cheio, como a flecha que ele mesmo anuncia.
Enviado por AC de Paula em 02/04/2025
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